O Direito dos Cabos à Concessão de Anistia Política e Reparação Econômica

O Direito dos Cabos à Concessão de Anistia Política e Reparação Econômica

Marcelo Pires Torreão e Daniel Fernandes Machado*

 

No dia 24/02/2017, foram publicados cinquenta indeferimentos de pedidos de anistia, formulados por antigos Cabos que serviram a Força Aérea Brasileira durante o período do regime militar (páginas 60 a 62 do Diário Oficial da União). Esses cabos ingressaram nas Forças Armadas antes de 12/10/1964 e foram licenciados de forma abrupta com base na Portaria nº 1.104/64 da mesma data, considerado ato de exceção de natureza política.

Todas as portarias de indeferimento foram assinadas pelo Ministro Interino da Justiça e Segurança Pública, responsável pela pasta até que seja nomeado o titular desse cargo. Esses resultados chamam atenção, pois a Comissão de Anistia havia proferido acórdãos favoráveis aos respectivos pedidos. Em regra, após parecer favorável da Comissão de Anistia, o Ministro de Estado da Justiça concede a reparação econômica (art. 3º, parágrafo único, da Lei 10.559/02).

Segundo disposição legal, cabe ao Ministro da Justiça a decisão final quanto aos pedidos de anistia (art. 10 da Lei 10.559/02). Na mesma lei, está prevista a competência da Comissão de Anistia para examinar todos os requerimentos administrativos mediante a realização de diligências, aferição de provas, requisição de informações, análise de documentos, oitiva de testemunhas, emissão de pareceres técnicos e arbitramento dos valores de indenização (art. 12 e parágrafos da Lei 10.559/02).

Dito de outro modo, em se tratando de requerimentos de anistia política, a última palavra é do Ministro da Justiça, mas todas as demais são da Comissão de Anistia. Portanto, não pode o Ministro da Justiça simplesmente impor a prevalência de seu entendimento pessoal sobre a orientação adotada pelo colegiado da Comissão de Anistia, a menos que o faça com base em substancial amparo jurídico que o autorize a adotar essa solução divergente.

Não foi o que aconteceu nos casos aqui analisados. Na verdade, para tentar justificar a utilização de entendimento contrário àquele recomendado pela Comissão de Anistia, o Ministro da Justiça utilizou um antigo parecer da AGU (Parecer 106/2010/DECOR/CGU/AGU). Esse parecer apenas expressa o entendimento da Advocacia Geral da União, naquele específico momento, no sentido de que o licenciamento dos Cabos da Força Aérea Brasileira não teria caráter político.

Contudo, a AGU não é o órgão responsável por analisar os pedidos de anistia política. Como visto acima, essa responsabilidade recai sobre a Comissão de Anistia, que possui a incumbência legal de assessorar o Ministro de Estado da Justiça nos assuntos relacionados aos pedidos de anistia política.

Por sua vez, a Comissão de Anistia possui sólida convicção quanto à perseguição política perpetrada contra os antigos cabos. Esse entendimento foi adotado após a análise de vários documentos sigilosos da Aeronáutica. Tais documentos demonstraram que a cúpula da Força Aérea Brasileira estava convencida do caráter subversivo dos cabos e elaborou um plano para expulsá-los, concretizado com a edição da Portaria 1.104/64. Essa convicção da Comissão de Anistia está estampada na vigente Súmula Administrativa 2002.07.0003, que dispõe o seguinte:

“A Portaria n.º 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política”.

Por meio do Ofício nº 678/2008 enviado ao Tribunal de Contas da União, o ilustre Presidente da Comissão de Anistia à época, Paulo Abraão, defendeu a legalidade das anistias concedidas aos cabos:

“10. Os mencionados deferimentos de pedidos de anistia referem-se a um grupo determinado de pessoas cujos atos arbitrários do governo, calcados em motivação política, explicitam o direito à anistia de forma clara e objetiva. Neste contexto, faço referência ao texto de Abelardo Jurema, publicado no ‘O Cruzeiro’ de 04 de julho de 1964, onde o ex-Ministro da Justiça narra as turbulências e crises dos últimos dias do Governo ‘Jango’.

11. No texto, o autor deixa claro a agitação social e militar que se instalara nos últimos dias de março, com as dificuldades encontradas pelas Forças Armadas, onde os oficiais eram reformistas, e os praças firmavam apoio a legalidade e a ‘Jango’, e mostra a sucessão de acontecimentos e decisões que levaram a perda do equilíbrio no poder, e ao golpe de abril.

12. Neste interim, o que melhor e mais notoriamente representa a repressão política dentro das armas são os atos da Marinha (em especial a exposição de motivos nº 138), que visava reprimir a rebelião ocorrida no Sindicato dos Metalúrgicos, que envolvia a participação de civis e militares da Marinha, e posteriormente o controle de diversos navios da Armada, e que se consagrou com o ato de baixar armas dos fuzileiros ‘recrutados’ para controlar o ‘motim’, e na necessidade de uso das tropas do Exército para repressão da manifestação que já durava três dias.

13. Nessa ocasião, a Marinha, optou por banir de seus quadros todos os militares envolvidos na rebelião, direta ou indiretamente, e com qualquer grau de participação.

14. A Aeronáutica, embora sem participação militar direta nos fatos ocorridos nos dias 26, 27 e 28 de março de 1964, mas ante os acontecimentos, também procedeu a uma investigação em seus quadros. Tal investigação resultou no afastamento pontual dos apontados na Portaria nº 1.103 e agiu, de forma preventiva, com relação aos cabos da Portaria nº 1.104.

15. Assim, a motivação exclusivamente política do licenciamento de diversos militares da Força Aérea Brasileira encontra-se na edição de algumas normas do período, considerando os fatos da época, tinham como motor a perseguição daqueles considerados suspeitos de práticas revolucionárias dentro da Aeronáutica, onde principalmente os Cabos se organizavam em instituições, as quais a de maior notoriedade foi a ACAFAB – Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira.” 

A análise feita pelo Presidente da Comissão de Anistia foi corroborada pela Nota AGU/CGU/ASMG n.º 01/2011. Veja-se, portanto, que a mesma Advocacia Geral da União concordou com o caráter político da perseguição cometida contra os antigos cabos da FAB, conforme se verifica abaixo:

“13. É inegável que a Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, do Ministro da Aeronáutica, tivesse explicitado pesadíssima motivação política. A deposição do Governo João Goulart, por parte das Forças Armadas, ensejou movimentação que redundou no afastamento daqueles que eram identificados com o regime deposto. O ideário que oxigenou o movimento de 1964 radicava no movimento tenentista da década de 1920, especialmente no que se refere aos episódios da revolta do Forte de Copacabana, bem como na Revolução Paulista de 1924.

14. O aludido ideário fora de certa forma retomado por alguns setores que apoiaram o movimento de 1930, ressurgiu, com muita força, ao longo dos 206 dias de mandato do Governo Jânio Quadros, realizando-se, plenamente, em 1964, inclusive com o apoio de governos civis (refiro-me a Carlos Lacerda e a Ademar de Barros, contra os quais posteriormente se voltou, bem como a Magalhães Pinto).

15. Por isso, os focos de insurreição, supostamente identificados com o regime deposto, foram objeto de intensa perseguição. Os cabos amotinados no Rio de Janeiro, bem como os que tomaram o Aeroporto de Brasília, por exemplo, teriam sido alvos da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, do Ministro da Aeronáutica.”

A preocupação da Aeronáutica com a mobilização dos cabos foi exposta em expedientes reservados. A motivação política da perseguição aos cabos é objeto do Ofício Reservado nº 04, de setembro de 1964, editado pelo Estado-Maior da Aeronáutica, em que se consignou:

Vários dos fatores anteriormente relacionados explicam até a recente tentativa de muitos em organizarem-se em Associações de caráter civil, para assim pleitearem, mais ao abrigo de sanções disciplinares, os benefícios legais que almejam valendo-se por instinto de políticos. Nesse caso ao mesmo tempo em que pleiteiam favores, ficam sujeitos à exploração de demagogos ou agitadores que pretendem cavar dissenções nas Forças Armadas, com incitamentos direitos ou indiretos à indisciplina para imobilizarem a ação dos chefes militares ou atrasarem-na, enquanto manobram para a posse do Poder.” 

Como se pode observar, o Comando da Aeronáutica temia o potencial subversivo do movimento dos cabos e, por esse motivo, engendrou a perseguição política à categoria, especialmente por meio da exclusão ou licenciamento dos cabos de suas fileiras. Mais um expediente reservado, o Boletim n.º 21, de maio de 1965, evidencia de forma ainda mais clara a perseguição política à categoria dos cabos:

“Em Ofício Reservado nº 014/GM-2/S-070/R, de 09 de abril de 1965, o Excelentíssimo Senhor Chefe do Gabinete do Ministro, remeteu cópia a esta Diretoria, dos autos do Inquérito Policial Militar instaurado na ACAFAB, do qual foi encarregado inicialmente o CapAv – Marialdo Rodrigues Moreira, e posteriormente o Excelentíssimo Senhor Marechal do Ar R/1 – Hugo da Cunha Machado, para apurar atividades subversivas, a fim de ser feita a publicação em Boletim Reservado desta Diretoria, da Solução dada no referido Inquérito, pelo Excelentíssimo Senhor Ministro da Aeronáutica;

Neste Inquérito Policial Militar, instaurado por solicitação do Comando da Base Aérea de Santa Cruz, foram apuradas as atividades subversivas da entidade denominada ‘Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira’ (ACAFAB). Os fatos apurados atestam que a entidade: foi criada sem autorização do Ministério da Aeronáutica; vem utilizando indevidamente o nome da Força Aérea Brasileira; que sua Diretoria tomava parte ativa em reuniões em atividades subversivas; que desenvolvia atividades ilícitas, contrárias ao bem público e a própria segurança nacional; que, através de reuniões subversivas na entidade era tramada a deposição de ex-Presidente da República e seguidas, in totem, as teses contrárias ao regime, do então Deputado Leonel Brizola; que teve participação direta nos acontecimentos subversivos, que foram levados a efeito no Sindicato dos Metalúrgicos; ‘A Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira’, registrada sob esse título, contrariando as Autoridades do Ministério da Aeronáutica, deverá ter seu registro, como pessoa jurídica, cassado mediante AÇÃO JUDICIAL INTENTADA pelo Ministério da Aeronáutica; uma vez que essa denominação – ‘DE CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA’ – envolve o nome da corporação e se presta a explorações políticas. É recomendável que sejam tomadas medidas para prevenir que se organizem outras entidades, de caráter tendencioso como a ‘ACAFAB’ e a ‘CASA DOS CABOS DA AERONÁUTICA DE SÃO PAULO’, associação de caráter civil organizada por graduados da Força Aérea Brasileira, que devem ser mantidas sob vigilância para evitar que se degenerem. Tendo ficado evidenciada no decorrer deste IPM a prática de transgressões disciplinares, face ao relatório fls. 574, usque 584, resolvo:

1º) Aplicar a punição de expulsão aos seguintes Cabos: (…);

Ainda, imponho a pena disciplinar de 30 (trinta) dias de prisão aos militares abaixo discriminados (… )

Determino, outrossim, a Diretoria Geral do Pessoal da Aeronáutica que atente com especial cautela para a conduta dos Cabos, cujos nomes constam das relações de fls. 35, 122 a 124, 126 a 140, 364 a 365, os seguintes (… );

Que o engajamento ou reengajamento, objeto de exame cuidadoso, primordialmente no que se relaciona com o comportamento militar e civil;

Também atendendo, ao sugerido no relatório de fls. 574, RESOLVO, proibir, expressamente, sejam feitos, em folhas de pagamento, desconto em favor DA ASSOCIAÇÃO DOS CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA, da Casa dos Cabos da Aeronáutica de São Paulo e de quaisquer outras associações de caráter civil, organizadas por Cabos pertencentes à Aeronáutica.

RESOLVO, ainda sejam expedidos avisos, comunicações, rádios ou circulares a todas às Unidades do Ministério da Aeronáutica, cientificando-as da decisão acima adotada;

Outrossim, DETERMINO aos Senhores Comandantes de Unidades procedam ao fechamento sumário e imediato de todas as sucursais da denominada Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira, que, porventura, ainda estejam em atividades.

Também, resolvo sejam pedidos informações ao Excelentíssimo Senhor Comandante da 4ª Zona Aérea respeito das atividades da denominada ‘CASA DOS CABOS DA AERONÁUTICA DE SÃO PAULO’, devendo ser ao meu Gabinete remetidos Estatutos e relatados todos os fatos atinentes à mesma.

Ainda, a ‘ASSOCIAÇÃO DOS CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA’, já tendo suas atividades suspensas por seis meses, pelo Decreto Presidencial nº 55.629, publicado no Diário Oficial de 28 de janeiro de 1965, deve, face à sua periculosidade, ser extinta, como o foi sua congênere ASSOCIAÇÃO DOS CABOS E MARINHEIROS. A extinção completará a série de medidas adotadas pelas autoridades federais para erradicar do meio social e sobre tudo das classes militares os organismos subversivos;

Impõe-se a medida contra a ‘ASSOCIAÇÃO DOS CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA’, que, valendo-se das garantias constitucionais que asseguram a liberdade de associação de palavra, de imprensa e das demais que caracterizam o regime democrático em que vivemos, pretendeu fazer letra morta das disposições que condicionam tais liberdades a licitude das suas finalidades.

Pedido imediato será encaminhado ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça, a fim de que seja extinta, no judiciário, a ‘Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira’, na forma prevista pelo artigo 670 do Código de Processo Civil e artigo 2º e 6° do Decreto-Lei 9.085 de 25 de março de 1946;

Solicito, também, que os Senhores Comandantes da Força Aérea Brasileira esclareçam com brevidade se outras entidades de cabos da Força Aérea Brasileira têm presentemente atividade;

Remetam-se cópias dos relatórios de fls. 574 e fls. 584, e da presente solução a Comissão Geral de Investigações;

Envie-se este IPM na observância do Parágrafo 1º do artigo 117 do Código de Justiça Militar à Diretoria Geral do Pessoal da Aeronáutica, para que providencie a respeito de todas as determinações ora feitas e para que promova a efetivação das punições disciplinares;

Recomendo, ainda, que a Diretoria Geral do Pessoal da Aeronáutica ponha em execução todas as ordens ora expedidas, apresentando com toda a brevidade sugestões para Avisos, ou outras medidas, caso sejam necessários e imprescindíveis;

Publique-se a presente solução em Boletim Reservado – Rio de Janeiro, GB, 09 de abril de 1965 – Eduardo Gomes – Ministro da Aeronáutica.

Em consequência todas Organizações da FAB, de modo geral, tomem conhecimento e as providências que lhes competirem e, mais particularmente, o Excelentíssimo Senhor Comandante da 4° Zona Aérea para a providência da 6ª recomendação acima transcrita, bem como demais Organizações para a 8° recomendação, fazendo transitar as informações através desta Diretoria.”

Dessa forma, infere-se que o Ofício Reservado nº 04 e o Boletim Reservado nº 21 não deixam dúvidas sobre a motivação exclusivamente política nas expulsões, desligamentos e licenciamentos ex officio de cabos. A motivação política da Aeronáutica resultou na edição das Portarias nº 1.103 e 1.104, entre outros atos de perseguição. A Portaria nº 1.103/64 determinou o afastamento de 11 cabos identificados como os líderes do movimento subversivo no âmbito da FAB.

Porém, o Comando da Aeronáutica não se contentou com a perseguição aos líderes dos cabos. A perseguição foi estendida a toda a categoria por meio da edição da Portaria nº 1.104/64. A esse respeito, vale mais uma vez citar o Ofício nº 678/2008 do Presidente da Comissão de Anistia:

“25. Assim, não se pode deixar de ressaltar que as atividades exercidas pela Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira – ACAFAB, sem dúvida, representaram um grande obstáculo às autoridades militares golpistas, conforme se comprova pelos ofícios reservados citados acima, e em consequência a esta constatação a edição de uma norma (de estrutura formal, que apresentava em seu bojo amplos poderes de liberalidade o que lhe afastou o caráter discricionário) que desmobilizasse essa classe militar, foi certamente a opção considerada.

26. Todavia, diferentemente da Marinha, que apenas identificou e excluiu cada um dos envolvidos, a Aeronáutica optou pela tomada de duas medidas, uma punitiva, desligando aqueles que conseguiu nominar como envolvidos no inquérito ‘ACAFAB’ – Portaria nº 1.103, e uma preventiva, que evitava que mesmo futuramente, a mobilização de cabos eclodisse em movimentos considerados subversivos, pois ainda havia descontentamento dentro da corporação da FAB com os acontecimentos políticos do país – Portaria nº 1.104/64.

27. Foi então, considerando esta dinâmica preventiva, por ato administrativo foi revogada a Portaria n° 570/GM3, de 23 de novembro de 1954. O propósito da inovação era desligar os praças da FAB que depois de sucessivos reengajamentos já dominavam sua dinâmica institucional, detendo bom trânsito.

28. Diante da impossibilidade de desligamento sumário e instantâneo de todo o pessoal indiretamente envolvido com os fatos já narrados, eis que tal medida paralisaria a Aeronáutica por se tratar de uma imensa massa de trabalho, e considerando o impeditivo legal de desligamentos daqueles que prestassem serviço há mais de dez anos, pois adquiririam ‘estabilidade’, optou-se pelo desligamento administrativo daqueles que, na graduação de Cabo, viessem a completar 8 (oito) anos de serviço.

29. Isso viabilizaria o afastamento gradual de todos os envolvidos direta ou indiretamente com o ocorrido em Março/Abril de 1964, e por consequência evitaria a formação de novos movimentos que pudessem subverter a ordem dentro e fora da caserna.

30. Saliente-se que a adoção de regras de transição para evitar o desligamento sumário, foi objeto de preocupação do Grupo de Trabalho constituído pela Portaria nº 16, de 14 de janeiro de 1964, estudo este ignorado pelas autoridades militares quando das determinações inseridas no Boletim Reservado nº 21, culminada com a edição da Portaria nº 1.104.

31. Sob este contexto, foi elaborada a Portaria nº 1.104/64, um dos elementos do conjunto de atos procedimentais realizados pela Força Singular, para operacionalizar o afastamento de todos aqueles aos quais não se conseguiu atingir por meio do inquérito policial que culminou na Portaria n° 1.103/64, de forma nominativa.

32. Assim, ainda que alguns cabos não tenham participado ativamente nos acontecimentos que geraram a suspensão da ACAFAB pelo fato de servirem em outras Organizações Militares, não se pode negar o descrédito militar da classe/graduação de cabos perante a Força Aérea Brasileira, cujo receio quanto a novas intimidações revolucionárias deu origem a um ordenamento criado para atingir o grupo especificamente.

33. Assim, ao mesmo passo em que a Marinha e o Exército utilizaram-se dos Serviços de Inteligência para identificar e punir os subversivos dos seus quadros, a Aeronáutica utilizou-se ‘Erodes’, que não identificando Jesus, procedeu ao infanticídio geral, evitando problemas futuros” .

O próprio Ministro de Estado da Justiça, ao encaminhar ao Presidente da República o projeto da Medida Provisória nº 2.151/2001, convertida na Lei nº 10.559/2002, cuidou, na Exposição de Motivos nº 146/MJ, de 13 de abril de 2000, de explicitar a motivação política da Portaria n.º 1.104/64:

“Na sequência, e finalizando o Capítulo, o anteprojeto assegura aos atingidos pela Portaria n. 1.104 do Ministério da Aeronáutica de 12 de outubro de 1964 que se fundamenta no Ofício Reservado n. 04 de setembro de 1964 e pela Exposição de Motivos n. 138, de 21 de agosto de 1964, sem prejuízo de outros atos considerados pela Comissão.

A Reparação Econômica em Prestação Permanente e Continuada é assegurada aos anistiados políticos demitidos, licenciados, desligados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades profissionais remuneradas, abrangendo ainda àqueles que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-501-GM5, de 19 de junho de 1964 e nº S-285-GM5 e pela Portaria n. 1.104 do mesmo Ministério de 12 de outubro de 1964, que se fundamenta no ofício reservado nº 04, de setembro de 1964, e pela Exposição de Motivos n. 138, de 21 de agosto de 1964.”

No Senado Federal, o texto da Medida Provisória n.º 2.151/2001 foi aprimorado por meio de emenda aditiva que acrescentou ao texto do inciso XI do artigo 2º da medida provisória a expressão “licenciados”, com a seguinte justificativa:

“A maioria dos praças da Marinha e Aeronáutica foram licenciados com base nos atos 424, 425, 0365, etc (Na Marinha) e Portaria 1.104/GM3, (Na Aeronáutica) com fundamento em legislação comum (LRSM), quando na realidade ditos atos e portarias estavam eivados de vícios nulos por contrariar o princípio constitucional da equidade e da isonomia, podendo as Forças Armadas excluir qualquer praça, sem fundamentação plausível: bastava ser considerado ‘subversivo’, em desrespeito ao Princípio do Devido Processo Legal”. 

Em suma, a Portaria nº 1.104/64 foi expedida em um contexto de expurgo em massa de militares, majoritariamente de cabos, considerados subversivos pelo Comando da Aeronáutica. Em outras palavras, houve uma perseguição, com clara motivação política, a uma categoria determinada. A perseguição à categoria gerou efeitos individuais para todos os cabos que ingressaram na Aeronáutica antes da edição da Portaria nº 1.104, em 12 de outubro de 1964.

Desse modo, fica claro que a Comissão de Anistia, ao editar a Súmula Administrativa nº 2002.07.0003, atesta o caráter de ato de exceção da Portaria nº 1.104/64 e fundamenta-se em dados históricos e documentais consistentes. Trata-se, na verdade, de um reconhecimento de uma injustiça perpetrada pela ditadura militar contra uma categoria específica de militares, que foram impedidos de permanecer na Aeronáutica por motivação exclusivamente política.

Além de ignorar todos os documentos acima mencionados e desprestigiar o minucioso trabalho realizado pela Comissão de Anistia e sua súmula administrativa, o entendimento adotado pelo Ministro Interino da Justiça também se afasta da orientação pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. As duas turmas da Corte Suprema Brasileira já se debruçaram sobre a efetiva perseguição política àqueles Cabos que ingressaram na Fora Aérea Brasileira anteriormente a 12/10/1964 e foram prejudicados pela Portaria 1.104/64, conforme se verifica dos trechos de acórdãos abaixo transcritos.

“1. A anistia política de ex-cabos da Força Aérea Brasileira reclama, como requisito, que tenham ingressado nos quadros anteriormente à edição da Portaria n° 1.104-GM3/1964, do Ministério da Aeronáutica. Precedentes: RMS 25.851 AgR/DF, Rel. Min. Menezes Direito, RMS 25.642 AgR/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, RMS 31.808 ED/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia” (Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. RMS 25.754. Relator Ministro Luiz Fux. Unânime. DJe 25/08/2014).

“1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixou-se no sentido de que apenas existe direito subjetivo à anistia política, fundada na Portaria 1.104/64, do Ministério da Aeronáutica, aos cabos que, ao tempo de sua edição, já estavam incorporados à Força Aérea” (Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. RMS 26.025. Relator Ministro Teori Zavascki. Unânime. DJe 03/08/2015).

Caberá mais uma vez ao Poder Judiciário, no controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo, afastar as violações a direitos causados àqueles ex-cabos que foram prejudicados pelo regime de exceção. Ao realizar essa tarefa, o Poder Judiciário garante o respeito às específicas normas da Justiça de Transição, que constituem importante elemento para a pacificação social e para a construção de uma democracia legítima e duradoura.

* Marcelo Pires Torreão e Daniel Fernandes Machado são Advogados Sócios do Escritório Torreão, Machado e Linhares Dias – Advocacia, especializado em causas de direitos humanos, anistia política e justiça de transição.

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